O
MAL
O BEM E O MAL NUMA VISÃO JUNGUIANA
“O Mal é o oposto
necessário do Bem, sem ele não existiria o Bem. Não podemos prescindir do Mal.”
(Carl Gustav Jung, 2000, O. C., Vol. IX-1, § 567).
Apesar
de toda reação adversa que costumamos ter diante da simples menção ao Mal (com
M maiúsculo), não seria possível falar sobre a História da Humanidade sem nos
referirmos ao Mal tanto quanto ao Bem. Esses conceitos encontram-se bem claros
em narrativas da literatura, figuras, mitos, contos, religiões de todos os
tempos e lugares, mostrando o quanto separamos os dois em nossas vidas e a
eterna luta que criamos entre essas duas forças inerentes ao Cosmos e à
natureza humana.
Em
princípio, a idéia do Mal já nos incomoda, portanto, referir-se ao Mal, seja no
sentido mais amplo, seja sobre o mal em cada um de nós, será sempre uma tarefa
difícil e dolorosa, sem deixar de ser fascinante por envolver nossas emoções
mais profundas e seus reflexos no mundo em que vivemos. No entanto, da mesma
forma que indagamos de onde viemos, qual é a nossa origem e a de tudo que nos
cerca, fatalmente buscamos a origem da
maldade. A que se deve sua existência? No temor dessa resposta existe a culpa.
O que fizemos para merecer o Mal em nosso mundo e, principalmente, em nós
mesmos? A vivência do mal é algo que
acontece a todos nós, indiscriminadamente, seja por experiências pessoais ou
coletivas estamos sempre entrando em contato com situações ditas maléficas e
nos sentimos freqüentemente receosos e impotentes diante delas. Discutir esse
assunto para melhor entendê-lo, buscar
respostas e possíveis soluções é uma tentativa de aplacarmos nossa angústia
humana diante de forças desconhecidas e aparentemente incontroláveis.
Dentre
as pessoas que pensaram e levantaram questões sobre esse tema, ninguém o fez de
maneira tão profunda e abrangente como o psiquiatra C. G. Jung, até porque,
além de psiquiatra, ele foi, antes de mais nada, alguém interessado nos
mistérios da vida e do espírito. Assim,
praticamente em quase toda a sua obra, Jung referiu-se à idéia do Bem e
do Mal, e o fez de forma inovadora e criativa, pois, para ele, esses dois
conceitos representam um par de opostos dos mais importantes para o equilíbrio
do nosso mundo psíquico, físico e espiritual. De acordo com ele, jamais podemos
negar a existência do mal, seja por medo de enfrentá-lo ou pela tola presunção
de que este não poderá nos atingir. Assim falou Jung, do seu jeito muitas vezes
irreverente:
“Só o homem infantil é capaz de pensar que o mal não está
presente sempre e em toda parte, e quanto mais inconsciente estiver disto,
tanto mais o diabo lhe subirá na garupa.” (O. C., Vol. IX - 2, § 255)
Ele afirmava
que, por fazer parte da nossa natureza, o mal não pode ser evitado, mas podemos
entendê-lo e convivermos com ele sem prejuízo para nós e para o mundo que nos
rodeia.
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade,
Tanto horror perante os
céus?!...”
(Castro Alves, Poesias
Completas, pág. 136)
Os
versos do poeta baiano são muito significativos para expressar como deveria ser
o nosso assombro diante do que temos assistido de maldades e violências em
nosso mundo atual.
Devemos
indagar o que acontece com o Homem atual para permanecer, até hoje, preso às
repressões e possessões que não lhe permitem perceber a si mesmo e ao outro em
sua totalidade. Mal e Bem nos habitam e nos conduzem ao dualismo e à
dissociação do homem moderno o qual, com o passar do tempo, tem cada vez menos
noção de como lidar com esses dois lados da sua natureza. O homem primitivo tentava
amenizar a sua angústia fazendo oferendas e sacrifícios sangrentos aos deuses,
imaginando que assim aplacaria a ira deles. Hoje nos horrorizamos com as
atitudes dos povos primitivos mas, sem percebermos, as repetimos, de forma
inconsciente e, muitas vezes, mais cruel e inexplicável, pois deveríamos,
teoricamente, ter uma noção clara do que estamos fazendo. O que, na prática,
não tem acontecido.
Já
dizia Jung (1944), sobre nossa inconsciência, nas guerras do século XX:
“Há coisas mais horríveis, isto é, a loucura dos homens, as
grandes epidemias mentais, sob as quais nós todos sofremos hoje...Com
fatalidade infernal, as nações trabalham em prol da guerra e da incompreensão.
Nem o mais modesto desarmamento foi possível até agora... É curioso que as
pessoas continuem tão inconscientes para conhecer os perigos que na verdade as
ameaçam.” (Jung C G, Cartas, pág. 347)
Sabemos
que maldades da pior espécie assolam o nosso planeta desde os primórdios dos
tempos, que sempre existiram crueldades sem limites entre todos os povos de
todas as raças, que algumas religiões antigas praticavam barbaridades,
inclusive a dos gregos, um povo já mais desenvolvido em vários aspectos e que,
no entanto, também oferecia sacrifícios humanos para seus deuses. As Cruzadas
cristãs foram de uma violência extrema. Guerras terríveis aconteceram em todas
as eras passadas.
As
causas externas desses conflitos parecem poder explicar tudo: diferenças
políticas, brigas religiosas, lutas pelo poder, por terras, riquezas as mais diversas,
ou, num passado mais remoto: o primitivismo, o irracionalismo, a ignorância,
pouca evolução moral, ética e espiritual.
No
entanto, estamos no início do Século XXI e continuamos nos deparando com
atitudes humanas as mais irracionais, apesar de todo o nosso atual
desenvolvimento nos campos técnico e científico.
Jung
comenta sobre isso numa das entrevistas dele após a Segunda Guerra Mundial,
quando lhe foi perguntado se, com o final da guerra, os demônios que os alemães
carregavam haviam sido banidos e um mundo novo e melhor surgiria das ruínas.
Ele respondeu:
“Não, os demônios não foram banidos, essa é uma tarefa
difícil que ainda está por realizar. Agora que o anjo da história abandonou os
alemães, os demônios procurarão uma nova vítima. E isso não será difícil. Todo
homem que perde sua sombra, toda nação que cai no farisaísmo, é presa deles.
Amamos o criminoso e alimentamos um interesse candente por ele, simplesmente
porque o demônio nos faz apenas ver o argueiro no olho do nosso irmão e desse
modo nos burla. Os alemães recuperar-se-ão quando admitirem a sua própria culpa
e a aceitarem; mas os outros serão vítimas da possessão demoníaca se, em seu
horror perante a culpa alemã, esquecerem suas próprias deficiências morais. Não
devemos esquecer que exatamente a mesma tendência fatal para a coletivização
está presente nas nações vitoriosas tanto quanto na Alemanha, e que elas podem
tornar-se subitamente vítimas dos poderes demoníacos. A “sugestionabilidade
geral” desempenha hoje um papel tremendo na América...” (Entrevistas e
Encontros, pág. 147/148).
Sanford
(1988) faz uma avaliação semelhante a essa, quando comenta as atrocidades
cometidas pelos adversários durante as diversas guerras em nosso mundo:
“Porque o mal é contagioso. Dificilmente alguém se aproxima
do mal sem ficar contaminado e afetado por ele ...” (Mal, o Lado Sombrio da
Realidade, pág. 138)
Não
há, aqui, nenhuma intenção de fazer uma avaliação maniqueísta, muito pelo
contrário, o mais importante é ressaltar a dualidade que existe em tudo no
mundo e, principalmente, no ser humano. O que interessa, neste caso, é notarmos
que, num conflito armado e cruel, os dois lados agem como terroristas, cada um
a seu modo, e em grande parte inconscientes da maldade de seus atos. Dessa
forma continuam odiando-se e sentindo-se vítimas do inimigo, sem jamais
perceberem que estão tentando atacar seus próprios demônios refletidos no
oponente. Todos encontram-se possuídos pelo mal que vêem no outro, mergulhados
na sombra coletiva.
Marie
Louise Von Franz, a mais antiga discípula de Jung, referindo-se à sombra
coletiva, disse que esta se revela, principalmente, nas guerras e nos ódios
entre as nações, e conclui: “A sombra
coletiva é particularmente ruim, porque cada um apóia o outro em sua cegueira.”
Cegueira
que mostra estar muito longe de se realizar em nós, a promessa feita pela
serpente à Eva no paraíso. Na Bíblia, a serpente convence Eva a provar do fruto
da Árvore do Conhecimento, prometendo a ela a consciência de algo que, até
hoje, nos é vedado saber: “Sereis como Deus, conhecendo o Bem e o Mal.”
(Gênesis 1 - Cap. 3). Sobre esse texto, Jung replica:
“Donde nos vem a
crença de que conhecemos o bem e o mal? Só os deuses o sabem, nós não. Isto é
extremamente verdadeiro, inclusive sob o ponto de vista psicológico. Se nossa
atitude for esta: “Isto pode ser bem ruim ou também não”, então temos a chance
de acertar. Mas se já temos certeza de antemão, então nos comportamos como se
deuses fôssemos.” (Jung, O. C. vol. X – 3, § 862)
Além
da nossa inconsciência, sempre que falamos do bem e do mal, nos deparamos com a
questão da relatividade desses dois princípios. Não podemos afirmar, com
certeza, que algo é bom ou mau em si. No entanto, sabemos o que é bom ou mau
para nós, pelo menos no momento presente, mesmo que algum acontecimento
desagradável possa, no futuro, nos parecer ter sido necessário por nos ter
trazido algo de bom. É quando costumamos dizer que há males que vêm para o bem. Mas, sem dúvida, há controvérsias, e o
que é bom para uma pessoa pode não o ser para outra, Jung comenta isso falando
sobre o homem arcaico:
“Perguntado acerca da diferença entre o bem e o mal, um chefe
negro deu essa resposta: “Se eu roubar a mulher de um inimigo meu, isso é bom;
mas se ele roubar a minha, isso é mau”” (Jung, O. C. vol. X – 3, § 108).
Mesmo
moralmente discutível, essa atitude continua atual, fazendo parte do nosso
egoísmo, da vontade de o nosso ego obter o que quer, de realizar todos os
desejos sem levar em conta o sofrimento dos outros. Vemos assim que sofrimento,
dor e tristeza são expressões que definem o mal, como a felicidade, o prazer e
a alegria nos trazem o bem. Podemos, então, a partir desses sentimentos,
separar os dois conceitos e reconhecer cada um deles, atribuindo-lhes um valor
mesmo que subjetivo, mas que pode nos levar a valores mais universais quando
avaliamos o Bem e o Mal em termos gerais e nos revoltamos contra a maldade no
mundo.
Quando
Jung, na década de 40 do século passado, referia-se às Primeira e Segunda
Guerras Mundiais, demonstrava que o comportamento dos que delas participaram
lhe parecia absurdo, dado o desenvolvimento que a humanidade alcançara. O que
dizermos então do nosso momento atual, em que o ser humano continua a praticar
toda espécie de crueldade? Estamos em
pleno Século XXI, continuamos nos desenvolvendo em todas as áreas, científica,
técnica, cultural, com novas descobertas no campo da física, química, biologia.
Fazemos inseminação artificial, nascem bebês de proveta, produzem-se clones de
animais, usamos testes de DNA e criamos o Projeto Genoma, que mapeou o código
genético humano, permitindo o conhecimento de todos os genes da raça humana. Os
meios de comunicação estão cada vez mais desenvolvidos e evoluídos. As máquinas
tornam-se mais sofisticadas a cada dia, construímos foguetes e promovemos
viagens espaciais. Continuamos tentando descobrir de que é feita a matéria no
seu nível mais elementar ou, como diziam os antigos filósofos gregos, a arché
(princípio) de todas as coisas. Para isso foram criados os aceleradores de
partículas, que atingem velocidades próximas à da luz e que, segundo alguns
cientistas, entre eles o físico Sheldon Glashow, prêmio Nobel de Física em
1979:
“...podem gerar, como resíduo, uma partícula denominada strangelet, que
teria efeitos devastadores, com condições de engolir os núcleos atômicos,
crescendo sem parar até consumir a Terra inteira” (Revista Terra, setembro de
2003)
Parecemos
mais civilizados agora quando olhamos para o passado, achamos estarmos melhor
no estágio em que vivemos. Vencemos doenças com vacinas, remédios, cirurgias,
transplantes. Em compensação, tomamos
cada vez mais remédios e usamos todo tipo de drogas, para dormir, para ficar
acordado, para acalmar, para animar, além de fumarmos e ingerirmos bebidas
alcoólicas. Não admitimos mais sentir qualquer tipo de dor ou sofrimento físico
ou psíquico, vivemos literalmente dormentes. Além disso, as drogas mais pesadas
chegam a nós através do crime organizado, destroem vidas e incentivam outros
crimes.
Por
trás dessa decadência humana, encontra-se o pior dos males, o dinheiro, esse
Deus que criamos, tirânico e devorador, que traz em si o germe do poder e da
dominação. Aliás, somos escravos de uma
trindade terrível: Sucesso, Dinheiro e Poder. Para completar o quatérnio, temos
o culto da Eterna Juventude, da necessidade do corpo perfeito e malhado, das
plásticas e lipoaspirações, dos anabolizantes e dos seios artificiais. Não nos
é permitido envelhecer sem nos sentirmos feios e ridículos. Se não
envelhecemos, onde ficará o Velho Sábio? Vai virar sombra e nos restará um
futuro de puer æternus (eterna criança).
As
guerras atuais mostram o quanto ainda carregamos de ódios, ganância e
rivalidades. Continuamos a praticar toda espécie de ações nocivas ao bem-estar
da humanidade, geralmente em busca de ganhos materiais: mata-se, rouba-se,
vende-se drogas, há exploração e prostituição de menores, jogos ilegais e corrupção.
Ainda permitimos que exista fome e miséria no mundo. O ser humano parece não
ter limites para atingir seus objetivos, passando por cima de todos os bons
valores, ignorando todas as melhores virtudes que possuímos.
A
Psicologia Analítica trata dos tipos psicológicos, que Jung dividiu em quatro funções psíquicas, são elas:
pensamento, sentimento, sensação, intuição.
Em
seu livro “O Lado Sombrio da Realidade”, John Sanford (1988) refere-se ao mal
como necessário para incrementar a função sentimento e diz:
“Pode-se dizer que o mal no mundo ajuda a incrementar a
função sentimento, se não existisse o mal, não haveria reações de sentimento. O
mal é necessário para nos tornarmos completamente humanos.” (Pág. 20)
Parece
pertinente a idéia de que o mal ajudou a desenvolver o sentimento em nossa
natureza. Alguém com a função sentimento bem desenvolvida possui maior
capacidade de avaliação e reação em geral e esse efeito vai mais além,
levando-nos até a um maior desenvolvimento no mundo, pois o mal mexe conosco,
toca-nos profundamente, nos mobiliza fazendo-nos reagir e lutar, enquanto o bem
só nos apascenta, acalma e acomoda. Este é um tremendo paradoxo, com o qual
precisamos conviver, o de que, em algumas circunstâncias, o mal pode ser
destrutivo e construtivo ao mesmo tempo, que o mal pode trazer o bem. Sem
esquecermos que, para funcionar dessa maneira, precisamos usar nossa função
sentimento, buscando sempre ser mais atentos e humanos ao reagirmos ao que
acontece à nossa volta.
Se perguntarmos às pessoas por toda a face da
Terra, se elas preferem o bem ou o mal, certamente a maioria dirá que prefere o
bem. Há no ser humano um anseio, uma busca pelo bem, pela paz, pelo amor, como
uma nostalgia do Paraíso Perdido. O próprio fato de tentarmos negar em nós, o
que consideramos como sendo relacionado ao mal, denota o valor que conferimos
ao bem. Todos querem ser considerados bons perante a sociedade.
Como se explica, então, desejarmos e
valorizarmos o Bem e praticarmos o mal? Sequer percebemos que agimos assim, de
forma tão irracional, porque achamos sempre que são as outras pessoas que agem
mal, e aí encontra-se o perigo. Todos queremos que o bem venha ao nosso
encontro, mas nem sempre queremos encaminhá-lo aos outros, e desse jeito, por
não fazerem o circuito certo, as trocas não se completam. Cada um precisa fazer
a sua parte, pois sabemos que, no final das contas, todos os acontecimentos,
bons ou maus, que ocorrem em nossa sociedade, são consequência das ações humanas.
Isso nos traz a idéia da sombra e à necessidade
de retornarmos a nossa integridade
perdida, unindo a consciência ao lado oculto da mente. A necessidade de
sabermos que existem os processos inconscientes, tão vivos e atuantes quanto a
nossa razão consciente, porém mais fortes por compreenderem todo um conteúdo
que nos é desconhecido. Esse desconhecido reprimido e inferior, oculto por nós
mesmos, essa sombra recalcada que projetamos nos outros, gerando toda espécie de desentendimentos, neuroses e
sofrimentos, é responsável por boa parte de nossas ações sem nos darmos conta
disso. Tudo o que desconhecemos pode nos pegar de surpresa e provocar desastres
de todo tipo.
A grande maioria de nós ignora possuir
esse lado carregado de emoção, de sentimentos, em grande parte, fora do nosso
controle. Eles podem surgir nos momentos de crise, vindos do inconsciente
pessoal ou podem vir sob a influência do inconsciente coletivo. Não esqueçamos
que um dia, no princípio de nossa existência humana, fomos totalmente
irracionais, que a razão foi se desenvolvendo aos poucos e que a nossa mente
faz parte desse mundo psíquico, de uma riqueza imensa de imagens inconscientes,
algumas já reveladas, de forma simbólica, pelas mitologias e religiões, e
outras mais, ainda ocultas. Por isso é tão importante lermos os mitos,
conhecermos as religiões e aceitarmos a realidade que essas narrativas representam em nossa
psique para que possa haver a integração dos dois lados em nossa alma. Precisamos
entender que não são histórias inventadas por mentes primitivas, mas vivências
internas trazidas para fora por uma necessidade de mantermos a saúde mental.
Jung expressa isso em “Arquétipos do Inconsciente Coletivo”:
“A Humanidade sempre teve em abundância imagens poderosas que
a protegiam magicamente contra as coisas abissais da alma, assustadoramente
vivas. As figuras do inconsciente sempre foram expressas através dessas imagens
protetoras e curativas e, assim, expelidas da psique para o espaço cósmico.”
(O. C. Vol. IX – 1, § 21)
Para ele, as neuroses tinham origem em
uma dissociação da psique diante de um sofrimento intolerável, que podia
provocar o surgimento de um arquétipo de uma forma destrutiva, um arquétipo
demoníaco. A dissociação entre o bem e o mal nos traz esse sofrimento.
Um exemplo disso foi apresentado em uma
reportagem do programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, e maio de
2003. A reportagem dizia, com alarde, que na Noruega vivia-se num país ideal,
onde todos gostaríamos de viver. Nos dois anos anteriores, a Noruega havia
conquistado o melhor IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, entre todos os
países do mundo. Não existiam desempregados nem analfabetos, o nível financeiro
da população era muito alto. Paz e prosperidade conquistadas com justiça
econômica. O capitalismo norueguês, com forte base socialista, é centrado na
distribuição dos benefícios da principal fonte de renda do país, o petróleo.
Gente educada, que vive em harmonia, em Berguen, segunda maior cidade do país,
com cerca de 225 mil habitantes, não havia assaltos e crime era coisa muito rara:
média de um por ano e, em todo o país, nunca haviam chegado a cinquenta.
Os policiais noruegueses ganhavam o
equivalente a 25 mil reais por mês para fazer quase nada. As pessoas que
apareceram na reportagem, em suas casas ou andando pelas ruas, pareciam alegres
e tranqüilas. Rico e com muito tempo livre, o norueguês viaja muito e aproveita
várias outras formas de lazer.
Porém, ao final, a reportagem chamava a
atenção para a taxa de suicídios que, segundo eles, de tão alta, é considerada
um problema de saúde pública.
As imagens mostradas pela televisão
davam idéia de um país de sonhos, bons sonhos, e terminava como um grande
pesadelo. Este exemplo mostra claramente como não suportamos abafar totalmente
um dos lados da nossa natureza, pois o mundo é feito de opostos, tudo o que
existe necessita do seu complemento, isto é uma verdade inquestionável. No
entanto, não enxergamos essa realidade em nós e vivemos de forma capenga,
escondendo a face que nos parece feia e fazendo de conta que ela não existe,
até ao ponto de acreditarmos nisso. Temos bons exemplos na Literatura, vide
Fausto, Dr. Jekyll e Mister Hyde e O Retrato de Dorian Gray. Tememos perder,
diante do outro, a imagem de perfeição que nos é exigida pela nossa cultura e
fechamos os olhos para essa realidade, que representa a união cósmica, lindamente decantada pelo
nosso “maluco beleza”, poeta e visionário, na última estrofe da sua canção
“Trem das Sete”:
“Ói, olha o Mal, vem de braços e abraços com o Bem num
romance astral. Amém” (Raul Seixas)
A conjunção amorosa dos opostos nos
salva da destruição, pois começamos a nos entender, aceitar e paramos de
projetar o mal no outro. Como comentou Jung ao referir-se à construção da bomba
atômica:
“O homem passou a ser o pior inimigo do homem. É um choque
entre o homem e Deus, em que o gênio luciferino do homem produziu na
bomba H o poder de destruir mais eficientemente do que qualquer deus
antigo. Devemos começar aprendendo a conhecer o homem até que cada Jekyll possa
ver o seu Hyde.” (1977, Entrevistas e Encontros, pág. 227)
Que cada Jekyll possa ver o seu Hyde,
que nossos anjos convivam em paz com nossos demônios, pois difícil é o caminho
do meio, mas custa menos buscá-lo do que nos entregarmos à ilusão de que
podemos viver uma “psicologia positiva” que alguns estão pregando atualmente.
Segundo essa idéia, basta pensarmos só em coisas boas, que as más desaparecerão
de nossa mente, como numa mágica, e tudo estará resolvido.
É verdade que ir ao encontro do Bem traz
bons sentimentos, mas não destrói os maus sentimentos, não há como ignorá-los
pensando que estamos livres deles, não podemos transformá-los em inimigos e extirpá-los do nosso ser. Se
observarmos com cuidado o que nos acontece a cada momento, veremos que Jung
tinha razão.
Fausto, de Goethe (assinando o pacto com Mephisto) |
O mundo não se tornará melhor sem melhorarmos
a nós mesmos; não há como fazermos isso sem nos conhecermos e aceitarmos o que
somos. O que somos vai além da consciência, e o inconsciente costuma ser, para
a maioria, uma terra desconhecida, repleta de símbolos misteriosos, mas ricos
de significados importantes para esse processo. Eles nos aparecem em nossos
sonhos e imaginação, trazendo recados e muitas vezes, tentando nos orientar através
de idéias intuitivas. Estes símbolos são, como diz Mircea Eliade (1991):
“Como a epifania de um mistério, nos trazem, dentro do
possível, mensagens de nossa vida interior, necessárias para manter nosso
equilíbrio psíquico, através de um maior conhecimento de nós mesmos.” (Imagens
e Símbolos, págs. 8 e 9)
Companheiros do nosso processo de
individuação, os símbolos representam os arquétipos e revelam a nossa sombra,
no que ela contém de bom e de mau, de destrutivo ou de criativo, de tudo que
pode nos fazer crescer e despertar, cada vez mais, para uma vida plena.
É um despertar sofrido. O mal nos
assusta, as religiões cristãs dizem que devemos nos afastar dele, mas, ao nos
depararmos com uma situação igual à da Noruega, nos assustamos com o bem e
chegamos à conclusão de que o bem em excesso pode trazer o mal. Isto vai contra
tudo que aprendemos e deveria nos fazer pensar: O que significa esse paradoxo?
Nesse momento perceberíamos o absurdo de negarmos a totalidade, ao crermos num Deus totalmente Bom, o Summum Bonum
(o Bem Supremo). Todo exagero leva ao exagero oposto, esta é a lei da
enantiodromia (da qual falava Heráclito), ou no popular, como costumava dizer
uma tia-afim muito querida: “Tudo de mais é veneno...”
Fazendo
constantemente a ressalva de que sua visão não era religiosa, e repetindo que
era apenas um médico, psicólogo e empirista, Jung defendia a idéia de que as
religiões nos ajudam a vivenciar os arquétipos mais importantes que povoam
nossa psique, plenos de significados para nossa vida. Na sua obra sobre a
“Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade”, ele disse que as religiões se
achavam tão próximas da alma humana, com tudo quanto elas são e exprimem, que a
psicologia não poderia jamais ignorá-las. Jung confirma essa idéia na afirmação em que inicia citando uma frase
do Evangelho:
“Tudo está aí:”O Reino dos Céus está dentro de vós”, esta é
uma grande verdade psicológica. O cristianismo é um belo sistema de
psicoterapia. Cura o sofrimento da alma!” (1977, Entrevistas e Encontros, pág.
82).
Para a Psicologia Analítica, não há
desenvolvimento pessoal ou individuação sem aceitarmos a sombra, se não encaramos
o material que permanece inconsciente, este pode tornar-se um monstro, um
inimigo invisível que suga a energia do ego. O que permanece no inconsciente
jamais se modifica. Segundo Jung, as correções psicológicas são apenas
possíveis no nível da consciência. Como disse Hilman(James.Re-Visioning Psychology): "O Homem existe dentro da Psique ... não ao
contrário ... e muito da Psique estende-se além da natureza humana”
Portanto,
a busca precisa ser interna para encontrar o amor pelo nosso eu total. Esta não
é uma atitude egoísta, mas um aprendizado de auto-aceitação, de nos vermos como
íntegros, inteiros. Aceitar a unidade é o início do amor por toda criação, o
amor pela vida. É uma forma de dar graças aos céus por participarmos dessa
existência cósmica, reconhecendo a
sacralidade do existir, do estar aqui e agora, seja como for, e percebermos que
estivemos e vamos estar sempre ligados apesar das diferenças. Somos vários,
diversos mas estamos unidos ao Todo, a Deus, ao Centro ou ao Self, seja qual
for o nome que se dê ao princípio sagrado, a essa Fonte Criadora.
Por isso Jung conclamava: “Devemos
integrar nossa sombra”. Mas esta não é uma tarefa fácil para ninguém. Ao
encarar a sombra, mesmo sendo uma viagem ao inconsciente pessoal, não sabemos
até onde podemos ir. O limite entre o inconsciente pessoal e o coletivo depende
do nosso estado d’ alma e transpor esse limite pode significar a perda da nossa
sanidade mental. Diante disso, há que respeitar e cultuar o mistério, pois a
única certeza possível nesta vida é que toda ela é um Grande Mistério.
As pessoas que pensam, meditam e se
preocupam com a existência do mundo tendem a chegar a essa conclusão. A
diferença que pode haver entre essas pessoas é de que algumas imaginam que
nossa razão, sozinha, poderá um dia desvelar esse mistério enquanto outras
sabem que o mistério encontra-se muito além do horizonte racional. Trata-se de
um Misterium Tremendum, como dizia Jung, encontra-se no reino do numinoso, um
arquétipo com poder esmagador e irresistível, que Whitmont definiu como: “um
impacto energético e oracular de manifestação divina.” Tendo acesso a ele poderíamos, quem sabe,
encontrar as respostas às perguntas que nos angustiam. Mas sua visão é
devastadora, pode nos levar à inflação do ego, a imaginarmos que somos como
deuses e, conseqüentemente, a sermos dominados pelos poderes da Luz e das
Trevas. Luz e Trevas, duas poderosas energias complementares que, se unimos com
forças amorosas, representam a totalidade, contendo o Bem e o Mal. Ao agirmos assim, veremos
nelas duas faces de uma mesma realidade divina na qual estamos inseridos, da
qual fazemos parte.
Está
no Velho Testamento:
IS 45,5-7: “Eu sou Iahweh e não há nenhum
outro...Eu formo a Luz e crio as Trevas,
asseguro o bem-estar e crio a desgraça: sim, eu, Iahweh, faço tudo isto;”
ou IS 54,16: “Sabe que fui quem criou o ferreiro que sopra as brasas no fogo e
tira delas o instrumento para o seu uso; também fui eu quem criou o exterminador,
com a sua função de criar ruínas.”
Rosa Carmen
PS: Esse texto foi baseado em uma parte da minha Monografia do final do
Curso da Pós-graduação em Psicologia Junguiana do IBMR, no ano de 2003.