O BODE EXPIATÓRIO (Caper Emissarius)
Havia, há muitos anos
atrás, uma pequena Aldeia construída por um grupo de pessoas que, juntamente
com seus familiares desenvolveram uma comunidade pautada em princípios e ideais
muito elevados. O local era aprazível e era considerado abençoado e protegido
pelos deuses. Possuía, além de um governante, alguns mestres e sábios e um
conselho de anciãos, que eram tidos como os “grandes” da aldeia. O povo vivia
em relativa paz, de vez em quando, apareciam algumas turbulências fáceis de
resolver. Mas com o tempo e o aumento da população, tudo foi ficando mais
difícil, as pessoas começaram a se desentender, a competirem entre si, a
lutarem pra conquistar poder, a criarem intrigas, a armarem ciladas para
derrubar uns aos outros. Pararam de cooperar com as instituições vigentes e se negavam a pagar os impostos. Assim, foram se afastando cada vez mais dos
bons valores defendidos durante anos. Necessitavam ser reeducados.
O governante fez discursos
para o povo lembrando dos princípios e tradições que sempre nortearam a
comunidade. Os mestres, os sábios e o conselho de anciãos trataram de levar a
todos as suas mensagens, nas escolas, nas casas, nos templos e até nas praças,
exortando as pessoas a agirem com justiça, dignidade e solidariedade entre
elas. Falaram, falaram...e nada mudou.
Um certo dia chegou à
aldeia um homem simples, quase um mendigo, mas que trazia consigo, além de uma
mochila, uma velha viola. Ele se instalou em um cantinho da praça principal,
ficava por ali sem nada pedir, observando as pessoas. De vez em quando dava uma
volta por outras partes da cidade. Tocava e cantava lindas canções. As crianças
curtiam muito a presença daquele forasteiro, pois além da música que alegrava a
todos, gostava de contar histórias para elas, que sentavam ao seu redor e se
encantavam com as aventuras criadas por ele mesmo. Seu jeito suave, desprendido
e receptivo despertava a confiança das pessoas e algumas, mais solitárias,
chegavam até ele para lhe falar de seus problemas. O homem foi descobrindo aos
poucos, através de tudo o que ele via e principalmente pelas conversas e
comentários que ouvia, o que de mais importante estava faltando naquele local.
Com o tempo, cada vez mais sentia-se fazendo parte daquela gente e, pensando em
ajudar, começou a dizer, nas canções que cantava, o que causava os problemas
que existiam entre todos. Suas letras falavam da necessidade de afeto,
respeito, cooperação, confiança, fé e amor.
Mesmo percebendo que o
governante, os mestres, os sábios e os anciãos tentavam manter e preservar
as tradições e valores do seu povo e o faziam com muito amor por aquela gente,
o homem achava que deveria se referir a todos em seu canto, para não fazer
diferença entre eles e seu povo, temendo criar possíveis desavenças. Como os
achava pessoas muito nobres e mais conscientes e evoluídas que a maioria, pensou que entenderiam sua atitude pacificadora.
A partir daí, as suas canções, sempre em tom alegre e bem
humorado, começaram a incomodar cada vez mais a maioria da população adulta,
que não estava interessada em ouvir conselhos e muito menos em fazer qualquer
mudança. Até que um dia alguns aldeões se juntaram e foram procurar os
“grandes” da cidade e lhes disseram: “É um absurdo o que está acontecendo, esse
estranho está nos criticando, falando mal de todos nós, inclusive de vocês,
pessoas de bem, nobres e de muito valor, que sempre nos ajudaram, educaram e
protegeram. Quem ele pensa que é? Temos que nos livrar dele e vocês verão que
tudo vai melhorar.” Apesar da falta de lógica, essa afirmação surtiu o efeito
desejado. Imediatamente eles se convenceram que realmente era um absurdo aquele
homem chegar na aldeia deles fazendo tais observações, como se quisesse
dar-lhes lições, orientá-los. Logo eles, sempre justos e generosos, que todos
esses anos se sacrificaram e deram tudo de si para aquela aldeia, com o maior
desvelo e afeto. Sentiram-se ofendidos por aquela pessoa e irritados com sua
petulância. Como se atrevia? Esse estranho só poderia querer desuni-los, ele
era a causa de todos os problemas surgidos na aldeia.
Diante disso, ninguém
pensou em nenhum momento em tentar se aproximar do estranho menestrel e
conversar com ele, olhá-lo nos olhos, perscrutando sua alma, procurando saber
porque alguém usaria sua arte, sua energia e seu tempo lhes trazendo
mensagens... contando lendas para as crianças e cantando os males daquele
local. Se agissem desse modo, poderiam, quem sabe, entender o que aquela pessoa
significava e porque chegara até eles.
Mas, apesar de preocupados
com tudo o que estava acontecendo ao seu redor, a vaidade falou mais alto, pois
aquela pessoa não fazia parte de suas tradições. Precisavam e queriam
silenciá-lo, sendo assim resolveram expulsá-lo da aldeia. Mas ao tentarem
avisá-lo que deveria ir embora daquele lugar, já não o encontraram mais em
lugar nenhum da cidade e ninguém o havia visto saindo de lá. Simplesmente
desaparecera, como se a vontade dos governantes em se verem livres de sua
influência sobre a população, o sentimento de rejeição contra ele e o medo de
enfrentarem a própria sombra tivessem o poder de afastá-lo dali.
Depois disso, só restou a
tristeza dos solitários, um enorme silêncio nas praças da cidade e o desencanto
nos rostos das crianças... e tudo continuou como antes encaminhando a vida
dessa Aldeia para a desagregação total...
MORAL DA HISTÓRIA:
Quando, em tempos de crise,
temos nossas feridas comuns expostas e tentamos esconde-las, ofendidos e
magoados, fechando os olhos aos problemas, fazendo de conta que tudo está bem,
cheios de orgulho, preocupados apenas em defendermos nossa própria imagem aos
olhos do mundo, vamos projetando nos outros as nossas dificuldades. Buscamos,
fora de nós, os responsáveis por nossos fracassos e desânimos, assim corremos o
risco de não enxergarmos a salvação e perdermos uma grande oportunidade de
realizarmos, juntos, profundas transformações, pois não reconhecemos o valor das
mensagens que nos chegam, não ouvimos a voz interior, o canto vindo da alma, que pode nos trazer as bênçãos, a visão das melhores soluções e a cura dos
males, não apenas das nossas mazelas, mas de toda uma comunidade.”
Paz, Amor e Unidade.
Rosa Carmen